segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Druga Strona - STRACONY

Mais uma vez o stracony, para falar sobre como o mundo pode ser sempre mais estranho do que parece, que muitas vezes pode de fato te engolir e fazer de tudo para te destruir mas que em outras, podemos - mesmo que só escapando por entre suas brechas - devolver para ele toda nossa revolta, nossa vida... ou a mais sutil e, talvez de alguma maneira vitoriosa, mensagem de que não nos rendemos e não nos encaixamos nos seus moldes.


Druga Strona (O outro lado)


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(Do LP "Uwazajcie-Bomby Wisza Nad Waszymi Glowami")

Eu ouço vozes discutindo sobre meu futuro brilhante.
Como pode ser que em algum lugar longe daqui,
exista alguém que me conheça melhor do que eu mesm@?
Mundo criado por poderosos, feito de promessas.
E você não gostaria de ser um de nós?

Por favor não vá ate lá, não ouça o que eles dizem.
Eu olho para você e você nem me nota.
Eu lhe dou minhas mãos e de repente você se evapora.
Procurando em todos os canais - não é possível fazer contato.
Eu sei que não melhoraremos o mundo sozinh@s,
mas é melhor manter os olhos abertos do que viver nas sombras
sendo guiad@ por uma mão.
Não vá embora, não quebre nossa conexão.
Vamos ficas junt@s, vamos apenas tentar.
Talvez seremos capazes de chegar ao outro lado.



12

Winston olhou em torno do quartinho mal ajambrado sobre a loja do sr. Charrington. Ao lado da janela, a cama enorme fora feita, com cobertores esfarrapados e um travesseiro sem fronha. O relógio antigo, de mostrador de doze horas, tiquetaqueava na lareira. No canto, sobre a mesa de abrir, o peso de papéis que ele comprara na última visita cintilava suavemente na semi-obscuridade.
Na guarda do fogão havia um veterano fogareiro a óleo, uma caçarola e duas xícaras, fornecidos pelo sr. Charrington. Winston acendeu o fogo e pôs a panela d'água a ferver. Trouxera um envelope cheio de Café Vitória e umas pastilhas de sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam sete e vinte; na verdade eram dezenove e vinte. Ela devia chegar às dezenove e trinta.
Loucura, loucura, dizia-lhe o coração; loucura consciente, gratuita, suicida. De todos os crimes que um membro do Partido podia cometer, este era o mais difícil de ocultar. A idéia a princípio lhe viera à cabeça sob forma de uma visão do peso de vidro espelhado pela superfície da mesa de dobrar. Como previra, o antiquário acedera em alugar o quarto. Evidentemente, vinham a calhar uns dólares extra. Nem pareceu chocado ou desrespeitoso quando ficou claro que Winston queria o quarto com a finalidade de receber uma mulher. Ao invés, seu olhar perdeu-se na meia distância e ele falou de generalidades, com um ar tão delicado que parecia ter-se tornado parcialmente invisível. A possibilidade da solidão, disse ele, é muito valiosa. Todo mundo quer um lugar onde possa ficar só. E quando tem um lugar assim, é cortesia comum se calarem os que dele souberem. E apesar de parecer fanado e fora da vida, acrescentou até que a casa tinha duas entradas, sendo uma pelo quintal, que abria sobre o beco.


Debaixo da janela, alguém cantava. Winston espiou para fora, protegido pela cortina de musselina. O sol de junho ainda boiava alto nos céus, e no pátio ensolarado uma mulher monstruosa, sólida como uma pilastra normanda, com formidandos antebraços avermelhados e um avental de aniagem na cintura, caminhava entre uma tina de lavar e um varal, estendendo uma porção de panos quadrados em que Winston reconheceu fraldas. Sempre que não tinha a boca cheia de prendedores, cantava, com poderosa voz de contralto:

"Foi apenas uma fantasia desesperada,
Que passou como um dia de abril,
Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados,
Roubaram o meu coração gentil!"

Havia semanas que a canção estava em voga em Londres. Era uma das músicas sem conta, publicadas para os proles, por uma sub-seção do Departamento de Música. As letras eram compostas, sem intervenção humana, num instrumento chamado versificador. Mas a mulher cantava com tamanho sentimento que transformava aquela horrível pieguice num som quase agradável. Winston podia ouvir a mulher cantando e o ranger dos sapatos no lajeado, gritos de crianças nas ruas, e às vezes, na distância, o regougo esmaecido do tráfego, e no entanto o quarto parecia curiosamente mudo, por causa da ausência da teletela.
Loucura, loucura, loucura! tornou a pensar. Era inconcebível que pudessem freqüentar aquele lugar por mais de algumas semanas sem serem descobertos. Mas a tentação de ter um esconderijo que fosse verdadeiramente deles, dentro de casa, à mão, fora demasiada. Durante algum tempo após a visita ao campanário da igreja, não tinham podido se encontrar. As horas de trabalho tinham sido drasticamente aumentadas, à espera da Semana do Ódio. Ainda faltava mais de um mês, porém os preparativos vastos, complexos, exigiam trabalho extra de todo mundo. Afinal, ambos haviam conseguido a mesma tarde livre. Tinham combinado ir à clareira do bosque. Como sempre, Winston mal olhou para Júlia, quando se cruzaram no meio da multidão. Mas pela breve olhada que lhe lançou, pareceu-lhe que estava mais pálida do que do costume.
- Não pode ser - murmurou, assim que julgou seguro falar. - Quero dizer, amanhã não posso.
- Que?
- Amanhã de tarde, não posso ir.
- Por quê?
- Pelo motivo comum. Desta vez começou cedo. Por um momento, ele se sentiu furioso. Naquele mês, volvido desde que a conhecera intimamente, modificara-se a natureza do seu desejo. No começo, pouca sensualidade houvera nele. O primeiro contato amoroso fora simplesmente um ato de volição. Mas depois da segunda vez as coisas haviam mudado de figura. O aroma dos cabelos, o gosto da boca, a maciez da pele pareciam havê-lo penetrado, ou envolvê-lo. Ela se tornara uma necessidade física, algo que não apenas queria como sentia ter direito a gozar. Quando Júlia anunciou que não poderia ir, teve a impressão de estar sendo lesado. Mas naquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, as mãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontas dos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto. Winston raciocinou que, quando se vive com uma mulher, esse tipo de desapontamento deve ser uma coisa normal, que acontece mais de uma vez; de repente, dominou-o uma profunda ternura, como nunca sentira antes. Desejou que fossem um casal com dez anos de existência em comum. Desejou passear com ela pelas ruas, como estavam fazendo naquele instante, mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades e comprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima de tudo, que tivessem um lugar onde ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer o amor, cada vez que se encontravam. Não foi exatamente naquele instante, mas no dia seguinte, que lhe ocorreu alugar o quarto do antiquário. Quando sugeriu o plano a Júlia, ela concordou com inesperada presteza. Ambos sabiam ser loucura. Era como se dessem, de propósito, um passo para o túmulo. Sentado na beira da cama, Winston tornou a pensar nos porões do Ministério do Amor. Era curioso que aquele horror predestinado se acendesse e apagasse na sua consciência. Lá estava ele, fixado no tempo futuro, precedendo a morte com a mesma certeza que 99 precede 100. Não era possível evitá-lo, mas talvez fosse adiá-lo; e no entanto, ao invés disso, de vez em quando, ele encurtava a vida, por um ato consciente, voluntário.


Naquele momento, ouviu-se um passo rápido nas escadas. Júlia irrompeu no quarto. Trazia um saco de ferramentas de lona marrom crua, com que às vezes a vira entrando e saindo do Ministério. Tentou colhê-la nos braços, mas Júlia desvencilhou-se um tanto apressada, em parte por estar ainda com a bolsa na mão.
- Meio segundo - disse. - Olha só o que eu trouxe. Trouxeste esse horrendo Café Vitória? Logo vi. Podes levá-lo de volta, porque não precisamos dele. Olha.
Ajoelhou-se, abriu a bolsa, e tirou algumas chaves-inglesas e de fenda que enchiam a parte superior. Por baixo havia vários pacotes de papel. O primeiro embrulho que entregou a Winston lhe pareceu, ao tato, ter uma consistência estranha e no entanto vagamente familiar. Estava cheio de uma substância pesada, pulverulenta, que cedia onde se apertasse o papel.
- É açúcar?
- Açúcar de verdade. Nada de sacarina. E aqui temos um pão - um pão branco, decente, não aquela broa insossa - e uma latinha de geléia. Uma lata de leite... e olha! Disso eu me orgulho. Tive de enrolá-lo numa estopa, porque...
Mas não era preciso explicar porque o enrolara. O aroma já enchia o quarto, um aroma rico e convidativo, que lhe parecia uma emanação da meninice, mas que de vez em quando ainda sentia, propagando-se por um corredor antes de uma porta bater, ou espalhando-se misteriosamente numa rua cheia de gente; um cheiro olfateado uns segundos e depois perdido de novo.
- É café - murmurou Winston. - Café de verdade.
- Café do Partido Interno. Um quilo inteiro aqui.
- Como conseguiste arranjar tudo isto?
- É tudo para o Partido Interno. Não há nada que aqueles suínos não tenham. Nada. Mas naturalmente os garçons e os empregados afanam as coisas e... olha, trouxe também um pacotinho de chá.
Winston acocorara-se ao pé de Júlia. Rasgou um bico do pacote.
- Chá mesmo. Não são folhas de amora.
- Tem rodado muito chá por aí. Capturaram a Índia, sei lá - explicou ela, vagamente. - Mas escuta, querido. Quero que me dês as costas três minutos. Vai sentar do outro lado da cama. Não chegues à janela. E não olhes enquanto eu não te disser.
Winston ficou olhando, distraído, através da cortina de musselina. Lá no pátio a mulher dos braços avermelhados continuava marchando da tina para o varal, e vice-versa. Tirou dois prendedores de roupa da boca e cantou com profundo sentimento:

"Dizem que o tempo tudo cura,
Dizem que sempre se pode esquecer,
Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio,
Ainda fazem meu coração sofrer."

Sabia de cor a estúpida canção. A voz subia, boiando no doce ar estival, muito afinada, carregada de uma espécie de feliz melancolia. Tinha-se a impressão de que ficaria perfeitamente contente se a noite de junho fosse infindável, e inesgotável o monte de roupa suja, para ficar ali mil anos, pendurando fraldas no varal e cantarolando bobagens. E Winston achou curioso o fato de nunca ter ouvido um membro do Partido cantar a sós, espontaneamente. Isso teria parecido ligeiramente ortodoxo, uma excentricidade perigosa, como falar sozinho. Talvez fosse apenas quando as pessoas estão próximas da fome que sentem desejo de cantar.
- Já podes virar - disse Júlia. Ele voltou-se e, por um segundo, quase não pôde reconhecê-la. Francamente, esperara vê-la nua. Mas Júlia não estava nua. Operara uma transformação muito mais surpreendente. Pintara o rosto.
Devia ter ido a uma loja do bairro proletário e comprado um jogo completo de cosmética. Passara batom forte nos lábios, ruge nas faces, pó de arroz no nariz; até havia, em torno dos olhos, um toque de tinta que os realçava. A maquilagem não fora bem feita, mas nesse particular Winston não tinha grandes exigências. Não havia nunca visto ou imaginado uma mulher do Partido usando cosméticos. Era espantosa a melhora do seu aspecto. Com uns retoques de cor aqui e ali Júlia não apenas se fizera muito mais bonita como, sobretudo, mais feminina. O cabelo curto e o macacão masculinizante apenas davam destaque a esse efeito. Quando a tomou nos braços, uma onda de violeta sintética lhe invadiu as narinas. Lembrou-lhe a semi-escuridão de uma cozinha no sub-solo e a boca cavernosa de uma mulher. Era o mesmo cheiro; mas não importava.
- E perfume, também!
- Sim, querido. Perfume também! E sabes o que vou trazer da próxima vez? Vou arranjar um vestido de verdade, vestido de mulher, não sei ainda onde, e vou usá-lo em vez destas calças horrorosas. E vou usar meias de seda e sapatos de salto alto! Neste quarto serei mulher, não uma militante do Partido!
Jogaram a roupa para o lado e se aboletaram na vasta cama de mogno. Era a primeira vez que ele se despia de todo em presença dela. Até então tivera muita vergonha do corpo pálido e magro, das varizes saltadas na barriga da perna e a mancha acima do tornozelo. Não havia lençóis, porém o cobertor sobre o qual se haviam deitado era poído e liso, o tamanho e a elasticidade da cama os encheram de espanto.
- Com certeza está cheia de percevejos, mas que importa? - disse Júlia. Não se viam mais camas de casal, exceto na casa dos proles. Winston algumas vezes dormira numa, na infância. Júlia jamais, tanto quanto podia se lembrar.
Dali a pouco adormeceram. Quando Winston acordou os ponteiros do relógio indicavam quase nove. Não se mexeu, porque Júlia estava dormindo com a cabeça apoiada na curva do braço dele. A maior parte da maquilagem se transferira para a cara dele e o travesseiro, porém uma mancha de ruge ainda realçava a beleza das maçãs do rosto de Júlia. Um raio amarelo do sol poente atravessava oblíquo os pés da cama e iluminava a lareira, onde fervia ruidosamente a água da caçarola. No pátio, a mulher se calara, porém débeis gritos de crianças ainda flutuavam no ar, vindos da rua.


Winston ficou a meditar vagamente se no passado abolido fora normal dormirem numa cama assim, na fresca de uma noite de verão, um homem e uma mulher sem roupa, fazendo o amor quando quisessem, falando do que bem entendessem, sem sentir nenhuma obrigação de levantar, simplesmente largados no leito ouvindo os ruídos pacíficos lá de fora. Não era possível que tivesse havido uma era em que tais coisas fossem comuns. Júlia acordou, esfregou os olhos e ergueu-se num cotovelo, para olhar o fogareiro.
- Metade da água evaporou - disse ela. Daqui a um minuto levanto e faço café. Ainda temos uma hora. A que horas cortam a luz no teu prédio?
- Às vinte e três e trinta.
- Na minha hospedaria às vinte e três. Mas precisas chegar mais cedo porque... Ei! Vai-te embora, bicho imundo!
Ela de repente enredou-se na cama, apanhou um sapato do chão e atirou-o com força a um canto, com um gesto vigoroso, juvenil, como ele a vira fazer, jogando o dicionário em Goldstein, aquela manhã, durante os Dois Minutos de Ódio.
- Que foi?
- Um rato. Mostrou o focinho ali naquele buraco do rodapé. Estás vendo o buraco? Preguei-lhe um bom susto.
- Ratos! - murmurou Winston. - Neste quarto!
- Andam por toda parte - disse Júlia, indiferente, tornando a deitar-se. - Vivem até na cozinha da pensão. Alguns bairros de Londres pululam de ratos. Sabias que atacam criancinhas? Pois é, atacam. Em algumas dessas ruas, uma mulher não tem coragem de deixar um filho sozinho dois minutos. São os grandões, pardos, os piores. E o mais horrível é que -os brutos...
- Chega! - implorou Winston, cerrando os olhos.
- Querido! Estás tão pálido? Que aconteceu? Tens nojo de ratos?
- De todos os horrores do mundo... um rato! Ela apertou-se contra ele e enrolou as pernas e os braços nele, como se para tranqüilizá-lo com o calor de seu corpo. Ele não reabriu os olhos imediatamente. Por alguns momentos tivera a sensação de voltar a um pesadelo que se repetia ciclicamente na sua vida. Era sempre a mesma coisa. Estava parado diante duma muralha de trevas, e do outro lado da muralha havia algo insuportável, algo demasiado horrível para se fazer face. No sonho, a sua sensação mais profunda era sempre de auto-engano, porque de fato não sabia o que havia atrás da muralha de treva. Com um esforço fatal, como se arrancasse um pedaço do próprio cérebro, poderia ter trazido o mistério à luz. Mas sempre acordava sem descobrir o que era: de certo modo, porém, ligava-se com o que dizia Júlia quando a interrompera.


- Desculpa - pediu ele. - Não é nada. É que não gosto de ratos e pronto.
- Não te preocupes, querido, não deixarei que os bicharocos entrem aqui. Vou calafetar o buraco com aniagem, antes de sairmos. E da próxima vez trago reboco e tapo o orifício direitinho.
Já fora meio esquecido o instante negro de pânico. Sentindo-se ligeiramente envergonhado de si mesmo, ele sentou-se, encostando na guarda da cama. Júlia saltou, vestiu o macacão e fez café. O cheiro que se elevou da caçarola era tão poderoso e inebriante que eles fecharam a janela, não fosse alguém senti-lo e começar a especular. Ainda melhor que o sabor do café era a textura sedosa que lhe dava o açúcar, de que Winston quase esquecera após tantos anos de sacarina. Com a mão no bolso e segurando uma fatia de pão com geléia na outra, Júlia passeou pelo quarto, dando olhadas indiferentes à estante de livros, indicando a melhor maneira de consertar a mesa dobradiça, atirando-se na velha poltrona estofada para ver se era confortável, e examinando o absurdo relógio de doze horas com uma espécie de chacota tolerante. Levou para a cama o peso de papéis, para examiná-lo na luz melhor. Ele tomou-o, fascinado, como sempre, pelo aspecto macio, de água de chuva, do vidro secular.
- Que é isto? - indagou Júlia.
- Não creio que seja nada... quer dizer, não creio que tenha servido para nada. É por isso que gosto dele. É um pedacinho de história que se esqueceram de alterar. É uma mensagem de cem anos atrás, se ao menos soubéssemos lê-la.
- E aquela gravura ali - Júlia indicou com a cabeça o quadro na parede oposta - também tem cem anos de idade?
- Mais. Talvez duzentos. Não se sabe. Hoje em dia é impossível descobrir a idade de qualquer coisa.
Ela foi espiá-la.
- Foi aqui que o bruto meteu o focinho - disse, dando um chute no rodapé, logo abaixo do quadro. - Que lugar é esse? Já vi essa casa.
- É uma igreja, ou foi uma igreja. Chamava-se S. Clemente dos Dinamarqueses. - O fragmento de cantiga que o sr. Charrington lhe ensinara voltou-lhe à memória e ele acrescentou, quase com saudade: - Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente!
Para sua imensa surpresa, Júlia continuou:
- Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho,
Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey... Não me lembro como é que continua. Só sei que acaba assim: Aí vem uma luz para te levar para a cama. Aí vem um machado para te cortar a cabeça!
Pareciam santo e senha. Mas devia haver outro verso depois de "os sinos de Old Bailey." Talvez conseguisse arrancá-lo da lembrança do sr. Charrington, se o espicaçasse bem.
- Quem te ensinou isso?
- Meu avô. Costumava cantar-me essa cantiga quando eu era menina. Foi vaporizado quando eu tinha oito anos... ou pelo menos desapareceu. O que será limão? -acrescentou, inconseqüente. - Já vi laranja. É uma espécie de fruta redonda, amarela, com casca grossa.
- Eu me lembro do limão. Era bem comum até 1950 e pouco. Era tão azedo que só de cheirar a gente ficava com a boca amarga.
- Aposto que esse quadro tem bichos por trás - disse Júlia. - Um dia destes arranco-o daí e dou-lhe uma boa limpadela. Acho que já é hora de irmos embora. Preciso tirar esta tinta da cara. Que chatura! Depois tiro o batom do teu rosto.
Winston só levantou dali a uns minutos. O quarto escurecia. Voltou-se para a luz e ficou examinando o peso de papéis. O que lhe oferecia inexaustível interesse não era o fragmento de coral, porém o interior do vidro em si. Tinha tremenda profundidade e no entanto era quase transparente como o ar. Como se a superfície do vidro fosse a abóbada celeste, contendo um pequenino mundo, completo com sua atmosfera. Winston tinha a impressão de poder penetrá-lo, e que de fato estava nele, junto com a cama de mogno e a mesa dobradiça, o relógio, a gravura em aço e o próprio peso de papéis. O peso de vidro era o quarto em que estava, e o coral era a vida de Júlia e a dele, fixadas para a eternidade no coração do cristal.


Trecho do livro de George Orwell, 1984, Capítulo 12 - páginas 129 até 138.

Um comentário:

オテモヤン disse...
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