segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Druga Strona - STRACONY

Mais uma vez o stracony, para falar sobre como o mundo pode ser sempre mais estranho do que parece, que muitas vezes pode de fato te engolir e fazer de tudo para te destruir mas que em outras, podemos - mesmo que só escapando por entre suas brechas - devolver para ele toda nossa revolta, nossa vida... ou a mais sutil e, talvez de alguma maneira vitoriosa, mensagem de que não nos rendemos e não nos encaixamos nos seus moldes.


Druga Strona (O outro lado)


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(Do LP "Uwazajcie-Bomby Wisza Nad Waszymi Glowami")

Eu ouço vozes discutindo sobre meu futuro brilhante.
Como pode ser que em algum lugar longe daqui,
exista alguém que me conheça melhor do que eu mesm@?
Mundo criado por poderosos, feito de promessas.
E você não gostaria de ser um de nós?

Por favor não vá ate lá, não ouça o que eles dizem.
Eu olho para você e você nem me nota.
Eu lhe dou minhas mãos e de repente você se evapora.
Procurando em todos os canais - não é possível fazer contato.
Eu sei que não melhoraremos o mundo sozinh@s,
mas é melhor manter os olhos abertos do que viver nas sombras
sendo guiad@ por uma mão.
Não vá embora, não quebre nossa conexão.
Vamos ficas junt@s, vamos apenas tentar.
Talvez seremos capazes de chegar ao outro lado.



12

Winston olhou em torno do quartinho mal ajambrado sobre a loja do sr. Charrington. Ao lado da janela, a cama enorme fora feita, com cobertores esfarrapados e um travesseiro sem fronha. O relógio antigo, de mostrador de doze horas, tiquetaqueava na lareira. No canto, sobre a mesa de abrir, o peso de papéis que ele comprara na última visita cintilava suavemente na semi-obscuridade.
Na guarda do fogão havia um veterano fogareiro a óleo, uma caçarola e duas xícaras, fornecidos pelo sr. Charrington. Winston acendeu o fogo e pôs a panela d'água a ferver. Trouxera um envelope cheio de Café Vitória e umas pastilhas de sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam sete e vinte; na verdade eram dezenove e vinte. Ela devia chegar às dezenove e trinta.
Loucura, loucura, dizia-lhe o coração; loucura consciente, gratuita, suicida. De todos os crimes que um membro do Partido podia cometer, este era o mais difícil de ocultar. A idéia a princípio lhe viera à cabeça sob forma de uma visão do peso de vidro espelhado pela superfície da mesa de dobrar. Como previra, o antiquário acedera em alugar o quarto. Evidentemente, vinham a calhar uns dólares extra. Nem pareceu chocado ou desrespeitoso quando ficou claro que Winston queria o quarto com a finalidade de receber uma mulher. Ao invés, seu olhar perdeu-se na meia distância e ele falou de generalidades, com um ar tão delicado que parecia ter-se tornado parcialmente invisível. A possibilidade da solidão, disse ele, é muito valiosa. Todo mundo quer um lugar onde possa ficar só. E quando tem um lugar assim, é cortesia comum se calarem os que dele souberem. E apesar de parecer fanado e fora da vida, acrescentou até que a casa tinha duas entradas, sendo uma pelo quintal, que abria sobre o beco.


Debaixo da janela, alguém cantava. Winston espiou para fora, protegido pela cortina de musselina. O sol de junho ainda boiava alto nos céus, e no pátio ensolarado uma mulher monstruosa, sólida como uma pilastra normanda, com formidandos antebraços avermelhados e um avental de aniagem na cintura, caminhava entre uma tina de lavar e um varal, estendendo uma porção de panos quadrados em que Winston reconheceu fraldas. Sempre que não tinha a boca cheia de prendedores, cantava, com poderosa voz de contralto:

"Foi apenas uma fantasia desesperada,
Que passou como um dia de abril,
Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados,
Roubaram o meu coração gentil!"

Havia semanas que a canção estava em voga em Londres. Era uma das músicas sem conta, publicadas para os proles, por uma sub-seção do Departamento de Música. As letras eram compostas, sem intervenção humana, num instrumento chamado versificador. Mas a mulher cantava com tamanho sentimento que transformava aquela horrível pieguice num som quase agradável. Winston podia ouvir a mulher cantando e o ranger dos sapatos no lajeado, gritos de crianças nas ruas, e às vezes, na distância, o regougo esmaecido do tráfego, e no entanto o quarto parecia curiosamente mudo, por causa da ausência da teletela.
Loucura, loucura, loucura! tornou a pensar. Era inconcebível que pudessem freqüentar aquele lugar por mais de algumas semanas sem serem descobertos. Mas a tentação de ter um esconderijo que fosse verdadeiramente deles, dentro de casa, à mão, fora demasiada. Durante algum tempo após a visita ao campanário da igreja, não tinham podido se encontrar. As horas de trabalho tinham sido drasticamente aumentadas, à espera da Semana do Ódio. Ainda faltava mais de um mês, porém os preparativos vastos, complexos, exigiam trabalho extra de todo mundo. Afinal, ambos haviam conseguido a mesma tarde livre. Tinham combinado ir à clareira do bosque. Como sempre, Winston mal olhou para Júlia, quando se cruzaram no meio da multidão. Mas pela breve olhada que lhe lançou, pareceu-lhe que estava mais pálida do que do costume.
- Não pode ser - murmurou, assim que julgou seguro falar. - Quero dizer, amanhã não posso.
- Que?
- Amanhã de tarde, não posso ir.
- Por quê?
- Pelo motivo comum. Desta vez começou cedo. Por um momento, ele se sentiu furioso. Naquele mês, volvido desde que a conhecera intimamente, modificara-se a natureza do seu desejo. No começo, pouca sensualidade houvera nele. O primeiro contato amoroso fora simplesmente um ato de volição. Mas depois da segunda vez as coisas haviam mudado de figura. O aroma dos cabelos, o gosto da boca, a maciez da pele pareciam havê-lo penetrado, ou envolvê-lo. Ela se tornara uma necessidade física, algo que não apenas queria como sentia ter direito a gozar. Quando Júlia anunciou que não poderia ir, teve a impressão de estar sendo lesado. Mas naquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, as mãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontas dos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto. Winston raciocinou que, quando se vive com uma mulher, esse tipo de desapontamento deve ser uma coisa normal, que acontece mais de uma vez; de repente, dominou-o uma profunda ternura, como nunca sentira antes. Desejou que fossem um casal com dez anos de existência em comum. Desejou passear com ela pelas ruas, como estavam fazendo naquele instante, mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades e comprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima de tudo, que tivessem um lugar onde ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer o amor, cada vez que se encontravam. Não foi exatamente naquele instante, mas no dia seguinte, que lhe ocorreu alugar o quarto do antiquário. Quando sugeriu o plano a Júlia, ela concordou com inesperada presteza. Ambos sabiam ser loucura. Era como se dessem, de propósito, um passo para o túmulo. Sentado na beira da cama, Winston tornou a pensar nos porões do Ministério do Amor. Era curioso que aquele horror predestinado se acendesse e apagasse na sua consciência. Lá estava ele, fixado no tempo futuro, precedendo a morte com a mesma certeza que 99 precede 100. Não era possível evitá-lo, mas talvez fosse adiá-lo; e no entanto, ao invés disso, de vez em quando, ele encurtava a vida, por um ato consciente, voluntário.


Naquele momento, ouviu-se um passo rápido nas escadas. Júlia irrompeu no quarto. Trazia um saco de ferramentas de lona marrom crua, com que às vezes a vira entrando e saindo do Ministério. Tentou colhê-la nos braços, mas Júlia desvencilhou-se um tanto apressada, em parte por estar ainda com a bolsa na mão.
- Meio segundo - disse. - Olha só o que eu trouxe. Trouxeste esse horrendo Café Vitória? Logo vi. Podes levá-lo de volta, porque não precisamos dele. Olha.
Ajoelhou-se, abriu a bolsa, e tirou algumas chaves-inglesas e de fenda que enchiam a parte superior. Por baixo havia vários pacotes de papel. O primeiro embrulho que entregou a Winston lhe pareceu, ao tato, ter uma consistência estranha e no entanto vagamente familiar. Estava cheio de uma substância pesada, pulverulenta, que cedia onde se apertasse o papel.
- É açúcar?
- Açúcar de verdade. Nada de sacarina. E aqui temos um pão - um pão branco, decente, não aquela broa insossa - e uma latinha de geléia. Uma lata de leite... e olha! Disso eu me orgulho. Tive de enrolá-lo numa estopa, porque...
Mas não era preciso explicar porque o enrolara. O aroma já enchia o quarto, um aroma rico e convidativo, que lhe parecia uma emanação da meninice, mas que de vez em quando ainda sentia, propagando-se por um corredor antes de uma porta bater, ou espalhando-se misteriosamente numa rua cheia de gente; um cheiro olfateado uns segundos e depois perdido de novo.
- É café - murmurou Winston. - Café de verdade.
- Café do Partido Interno. Um quilo inteiro aqui.
- Como conseguiste arranjar tudo isto?
- É tudo para o Partido Interno. Não há nada que aqueles suínos não tenham. Nada. Mas naturalmente os garçons e os empregados afanam as coisas e... olha, trouxe também um pacotinho de chá.
Winston acocorara-se ao pé de Júlia. Rasgou um bico do pacote.
- Chá mesmo. Não são folhas de amora.
- Tem rodado muito chá por aí. Capturaram a Índia, sei lá - explicou ela, vagamente. - Mas escuta, querido. Quero que me dês as costas três minutos. Vai sentar do outro lado da cama. Não chegues à janela. E não olhes enquanto eu não te disser.
Winston ficou olhando, distraído, através da cortina de musselina. Lá no pátio a mulher dos braços avermelhados continuava marchando da tina para o varal, e vice-versa. Tirou dois prendedores de roupa da boca e cantou com profundo sentimento:

"Dizem que o tempo tudo cura,
Dizem que sempre se pode esquecer,
Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio,
Ainda fazem meu coração sofrer."

Sabia de cor a estúpida canção. A voz subia, boiando no doce ar estival, muito afinada, carregada de uma espécie de feliz melancolia. Tinha-se a impressão de que ficaria perfeitamente contente se a noite de junho fosse infindável, e inesgotável o monte de roupa suja, para ficar ali mil anos, pendurando fraldas no varal e cantarolando bobagens. E Winston achou curioso o fato de nunca ter ouvido um membro do Partido cantar a sós, espontaneamente. Isso teria parecido ligeiramente ortodoxo, uma excentricidade perigosa, como falar sozinho. Talvez fosse apenas quando as pessoas estão próximas da fome que sentem desejo de cantar.
- Já podes virar - disse Júlia. Ele voltou-se e, por um segundo, quase não pôde reconhecê-la. Francamente, esperara vê-la nua. Mas Júlia não estava nua. Operara uma transformação muito mais surpreendente. Pintara o rosto.
Devia ter ido a uma loja do bairro proletário e comprado um jogo completo de cosmética. Passara batom forte nos lábios, ruge nas faces, pó de arroz no nariz; até havia, em torno dos olhos, um toque de tinta que os realçava. A maquilagem não fora bem feita, mas nesse particular Winston não tinha grandes exigências. Não havia nunca visto ou imaginado uma mulher do Partido usando cosméticos. Era espantosa a melhora do seu aspecto. Com uns retoques de cor aqui e ali Júlia não apenas se fizera muito mais bonita como, sobretudo, mais feminina. O cabelo curto e o macacão masculinizante apenas davam destaque a esse efeito. Quando a tomou nos braços, uma onda de violeta sintética lhe invadiu as narinas. Lembrou-lhe a semi-escuridão de uma cozinha no sub-solo e a boca cavernosa de uma mulher. Era o mesmo cheiro; mas não importava.
- E perfume, também!
- Sim, querido. Perfume também! E sabes o que vou trazer da próxima vez? Vou arranjar um vestido de verdade, vestido de mulher, não sei ainda onde, e vou usá-lo em vez destas calças horrorosas. E vou usar meias de seda e sapatos de salto alto! Neste quarto serei mulher, não uma militante do Partido!
Jogaram a roupa para o lado e se aboletaram na vasta cama de mogno. Era a primeira vez que ele se despia de todo em presença dela. Até então tivera muita vergonha do corpo pálido e magro, das varizes saltadas na barriga da perna e a mancha acima do tornozelo. Não havia lençóis, porém o cobertor sobre o qual se haviam deitado era poído e liso, o tamanho e a elasticidade da cama os encheram de espanto.
- Com certeza está cheia de percevejos, mas que importa? - disse Júlia. Não se viam mais camas de casal, exceto na casa dos proles. Winston algumas vezes dormira numa, na infância. Júlia jamais, tanto quanto podia se lembrar.
Dali a pouco adormeceram. Quando Winston acordou os ponteiros do relógio indicavam quase nove. Não se mexeu, porque Júlia estava dormindo com a cabeça apoiada na curva do braço dele. A maior parte da maquilagem se transferira para a cara dele e o travesseiro, porém uma mancha de ruge ainda realçava a beleza das maçãs do rosto de Júlia. Um raio amarelo do sol poente atravessava oblíquo os pés da cama e iluminava a lareira, onde fervia ruidosamente a água da caçarola. No pátio, a mulher se calara, porém débeis gritos de crianças ainda flutuavam no ar, vindos da rua.


Winston ficou a meditar vagamente se no passado abolido fora normal dormirem numa cama assim, na fresca de uma noite de verão, um homem e uma mulher sem roupa, fazendo o amor quando quisessem, falando do que bem entendessem, sem sentir nenhuma obrigação de levantar, simplesmente largados no leito ouvindo os ruídos pacíficos lá de fora. Não era possível que tivesse havido uma era em que tais coisas fossem comuns. Júlia acordou, esfregou os olhos e ergueu-se num cotovelo, para olhar o fogareiro.
- Metade da água evaporou - disse ela. Daqui a um minuto levanto e faço café. Ainda temos uma hora. A que horas cortam a luz no teu prédio?
- Às vinte e três e trinta.
- Na minha hospedaria às vinte e três. Mas precisas chegar mais cedo porque... Ei! Vai-te embora, bicho imundo!
Ela de repente enredou-se na cama, apanhou um sapato do chão e atirou-o com força a um canto, com um gesto vigoroso, juvenil, como ele a vira fazer, jogando o dicionário em Goldstein, aquela manhã, durante os Dois Minutos de Ódio.
- Que foi?
- Um rato. Mostrou o focinho ali naquele buraco do rodapé. Estás vendo o buraco? Preguei-lhe um bom susto.
- Ratos! - murmurou Winston. - Neste quarto!
- Andam por toda parte - disse Júlia, indiferente, tornando a deitar-se. - Vivem até na cozinha da pensão. Alguns bairros de Londres pululam de ratos. Sabias que atacam criancinhas? Pois é, atacam. Em algumas dessas ruas, uma mulher não tem coragem de deixar um filho sozinho dois minutos. São os grandões, pardos, os piores. E o mais horrível é que -os brutos...
- Chega! - implorou Winston, cerrando os olhos.
- Querido! Estás tão pálido? Que aconteceu? Tens nojo de ratos?
- De todos os horrores do mundo... um rato! Ela apertou-se contra ele e enrolou as pernas e os braços nele, como se para tranqüilizá-lo com o calor de seu corpo. Ele não reabriu os olhos imediatamente. Por alguns momentos tivera a sensação de voltar a um pesadelo que se repetia ciclicamente na sua vida. Era sempre a mesma coisa. Estava parado diante duma muralha de trevas, e do outro lado da muralha havia algo insuportável, algo demasiado horrível para se fazer face. No sonho, a sua sensação mais profunda era sempre de auto-engano, porque de fato não sabia o que havia atrás da muralha de treva. Com um esforço fatal, como se arrancasse um pedaço do próprio cérebro, poderia ter trazido o mistério à luz. Mas sempre acordava sem descobrir o que era: de certo modo, porém, ligava-se com o que dizia Júlia quando a interrompera.


- Desculpa - pediu ele. - Não é nada. É que não gosto de ratos e pronto.
- Não te preocupes, querido, não deixarei que os bicharocos entrem aqui. Vou calafetar o buraco com aniagem, antes de sairmos. E da próxima vez trago reboco e tapo o orifício direitinho.
Já fora meio esquecido o instante negro de pânico. Sentindo-se ligeiramente envergonhado de si mesmo, ele sentou-se, encostando na guarda da cama. Júlia saltou, vestiu o macacão e fez café. O cheiro que se elevou da caçarola era tão poderoso e inebriante que eles fecharam a janela, não fosse alguém senti-lo e começar a especular. Ainda melhor que o sabor do café era a textura sedosa que lhe dava o açúcar, de que Winston quase esquecera após tantos anos de sacarina. Com a mão no bolso e segurando uma fatia de pão com geléia na outra, Júlia passeou pelo quarto, dando olhadas indiferentes à estante de livros, indicando a melhor maneira de consertar a mesa dobradiça, atirando-se na velha poltrona estofada para ver se era confortável, e examinando o absurdo relógio de doze horas com uma espécie de chacota tolerante. Levou para a cama o peso de papéis, para examiná-lo na luz melhor. Ele tomou-o, fascinado, como sempre, pelo aspecto macio, de água de chuva, do vidro secular.
- Que é isto? - indagou Júlia.
- Não creio que seja nada... quer dizer, não creio que tenha servido para nada. É por isso que gosto dele. É um pedacinho de história que se esqueceram de alterar. É uma mensagem de cem anos atrás, se ao menos soubéssemos lê-la.
- E aquela gravura ali - Júlia indicou com a cabeça o quadro na parede oposta - também tem cem anos de idade?
- Mais. Talvez duzentos. Não se sabe. Hoje em dia é impossível descobrir a idade de qualquer coisa.
Ela foi espiá-la.
- Foi aqui que o bruto meteu o focinho - disse, dando um chute no rodapé, logo abaixo do quadro. - Que lugar é esse? Já vi essa casa.
- É uma igreja, ou foi uma igreja. Chamava-se S. Clemente dos Dinamarqueses. - O fragmento de cantiga que o sr. Charrington lhe ensinara voltou-lhe à memória e ele acrescentou, quase com saudade: - Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente!
Para sua imensa surpresa, Júlia continuou:
- Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho,
Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey... Não me lembro como é que continua. Só sei que acaba assim: Aí vem uma luz para te levar para a cama. Aí vem um machado para te cortar a cabeça!
Pareciam santo e senha. Mas devia haver outro verso depois de "os sinos de Old Bailey." Talvez conseguisse arrancá-lo da lembrança do sr. Charrington, se o espicaçasse bem.
- Quem te ensinou isso?
- Meu avô. Costumava cantar-me essa cantiga quando eu era menina. Foi vaporizado quando eu tinha oito anos... ou pelo menos desapareceu. O que será limão? -acrescentou, inconseqüente. - Já vi laranja. É uma espécie de fruta redonda, amarela, com casca grossa.
- Eu me lembro do limão. Era bem comum até 1950 e pouco. Era tão azedo que só de cheirar a gente ficava com a boca amarga.
- Aposto que esse quadro tem bichos por trás - disse Júlia. - Um dia destes arranco-o daí e dou-lhe uma boa limpadela. Acho que já é hora de irmos embora. Preciso tirar esta tinta da cara. Que chatura! Depois tiro o batom do teu rosto.
Winston só levantou dali a uns minutos. O quarto escurecia. Voltou-se para a luz e ficou examinando o peso de papéis. O que lhe oferecia inexaustível interesse não era o fragmento de coral, porém o interior do vidro em si. Tinha tremenda profundidade e no entanto era quase transparente como o ar. Como se a superfície do vidro fosse a abóbada celeste, contendo um pequenino mundo, completo com sua atmosfera. Winston tinha a impressão de poder penetrá-lo, e que de fato estava nele, junto com a cama de mogno e a mesa dobradiça, o relógio, a gravura em aço e o próprio peso de papéis. O peso de vidro era o quarto em que estava, e o coral era a vida de Júlia e a dele, fixadas para a eternidade no coração do cristal.


Trecho do livro de George Orwell, 1984, Capítulo 12 - páginas 129 até 138.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Processo - LUMPEN

"O que uma banda pode realmente fazer pela revolução? Esta pergunta martela nossa mente, e as respostas são inseguras. Se sabemos que a nossa mensagem atingem as pessoas, mas sabemos também do seu pequeno alcance, e como muita gente não dá a mínima para o que vai além da suposta parte musical. Apesar de todos os nossos esforços para acabarmos com essa fragmentação, poucos conseguem perceber que é a superação desta dicotomia o que perseguimos calorosamente. Bem então porque tocar? Por um motivo bem simples; esta forma de expressão é a que nos dá mais prazer! Iremos estênde-la a todos os campos de atuação e outras formas de expressão, mas o hardcore é o que nos faz sentirmos pessoas livres. O Lumpen é isso, a não-classe, aqueles que foram expulsos do sistema de produção, os despossuídos de educação, de terra, de casa, mas também o estudante que acabou a universidade e está desempregado, a mãe que cria seu filho sozinha, o índio que tem a sua cultura estuprada o negro que têm que suportar pessoas falando que não existe racismo, os locutores das rádio-livres que são perseguidos, o maluco da periferia que pega ônibus lotado... enfim somos a verdadeira revolução! Prática e teoria exercidas no cotidiano, pois só quem não tem nada quer tudo, e nós sim faremos a história continuar seu curso de transformação. Não seguimos, como "banda", ideologias pré-definidas o que nos dá liberdade de absorver o que acharmos melhor de toda a experiência que tivermos. Nosso compromisso é puro e simplesmente com os princípios que defendemos: liberdade de escolha, autogestão, horizontalidade... Luta de classe para superação de qualquer tipo de divisão seja hierárquica e (ou) econômica. Crítica radical do cotidiano para morte da sobrevivência e a tomada de nossas vidas de volta. Lumpen é um plágio ambulante, de letras, bases, citações e intenções. Não temos nada de novo para lhe mostrar, mas combustível para reflexões seremos, pois nosso fortalecimento é necessário. Pessoas fracas não derrubam obstáculos! A realidade não permite divagações políticas-filosóficas, ela arde no corpo de quem sofre as conseqüências deste emaranhado de situações a todo instante criadas para nos aprisionar. De que lado você está?".


O Processo - LUMPEN


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(Do CD "Pelo bem da humanidade diga não à paz")

Eu acordo e não estou mais só, nunca estive, só não podia ver o cárcere se mostra como o único caminho.
Já não tenho escolhas, não sei por que estou sendo pres@, nem eles sabem, receberam ordens de algum lugar, vindas de alguém. Nuvens turvas, ofuscam tudo a minha volta, quem é culpado pela minha prisão?
Quem construiu estas “benditas” grades, não posso falar, não posso sorrir, nem mesmo chorar.
“Foi você quem provocou isso tudo!”
Repetidas inúmeras vezes em meus ouvidos, meu erro foi querer ser eu mesm@ e isso eles não vão aceitar, nunca!
“E que caia sobre você o processo, por blasfemar contra o controle,
com a estúpida idéia de acreditar em si mesm@, sua sentença está declarada!”
Não conseguirão tirar o sorriso do meu rosto, eu sou eu, e tudo é de tod@s.

Omnia sunt communia





Atenção, MOVE! Esta é a América!


[Em 13 de maio de 1985, o comando da cidade da Filadélfia governada por Wilson Goode, com explosivos fornecidos pelo governo federal de Ronald Reagan, bombardeou a casa coletiva da organização MOVE. Onze mulheres, homens, meninas e meninos foram queimados vivos e 62 famílias perderam suas casas neste ato de guerra urbana. Nenhum funcionário público passou um único dia na cadeia por este crime terrível.
Naquela época, o MOVE conduzia uma campanha para libertar nove dos seus membros detidos em uma prévia ofensiva militar desatada pela polícia da Filadélfia sob o governo de Franco Rizzo em 8 de agosto de 1978. Merle, Chuck, Janet, Phil, Eddie, Janine, Delbert, Mike e Debbie Africa foram condenados desde 30 a 100 anos de prisão por supostamente matar um policial com uma única bala. São conhecidos como os "MOVE 9" ou os “9 do MOVE”. A companheira Merle Africa morreu na prisão sob circunstâncias suspeitas em 1998.
No ano passado, os “9 do MOVE” deviam ter deixado a prisão sob liberdade condicional, mas o Conselho da Liberdade não os permitiu partir porque "não expressam remorsos" por um crime que sempre disseram que não cometeram. Este ano o Conselho escutará o caso outra vez.
O MOVE é uma organização que se define como revolucionária e anti-sistema e que defende todas as formas de vida -animal, vegetal e humana- contra a escravidão do sistema atual.
Numa carta recente, o preso político Phil Africa escreveu: "Desistir nunca! O sistema não é verdadeiramente poderoso. O sistema teme a nós de coração rebelde. O poder verdadeiro é visto na Mãe Natureza que nos protege e nos alimenta, não neste sistema débil que só nos traz morte, destruição e dor. Virá um dia quando todos e todas conseguiremos viver em paz e harmonia".
A seguir um artigo atualizado sobre a organização MOVE escrito por Hans Bennet e publicado na revista Born Black de 7 de maio de 2009.]


“Atenção, MOVE! Esta é a América!” declarou por megafone o Comissário da Polícia Sambor alguns minutos antes do ataque policial contra a residência da organização revolucionária MOVE, no dia 13 de maio de 1985. No assalto policial cinco crianças e 6 adultos foram mortos, incluindo o fundador do MOVE, John Africa. Depois que a polícia disparou mais de 10.000 cartuchos em sua casa no oeste da Filadélfia, um helicóptero da polícia estatal jogou uma bomba C-4, ilegalmente fornecida pelo FBI, sobre o teto do MOVE. A bomba causou um incêndio que acabou destruindo 60 casas, uma quadra inteira em uma colônia negra. Carregando o jovem Birdie Africa em seus braços, a única outra sobrevivente, Ramona Africa, se esquivou das balas e escapou do incêndio com queimaduras que deixaram cicatrizes permanentes.
Hoje em dia, Ramona lembra que estava no sótão com as crianças quando a operação começou. “Torrentes de água correram das mangueiras. Dispararam gás lacrimogêneo depois de usarem explosivos para demolir a parte frontal da casa. Escutamos o intenso fogo de metralhadoras e logo houve mais ou menos um silêncio. Foi então que lançaram a bomba, sem aviso”.
“A princípio, nós que estávamos no sótão, não demos conta de que a casa estava em chamas, pois havia tanto gás lacrimogêneo que era difícil reconhecer a fumaça. Abrimos a porta e começamos a gritar avisando que estávamos saindo com crianças. Eles estavam gritando também. Sabíamos que eles tinham nos escutado, nos fizemos visíveis na porta de entrada mas mesmo assim eles abriram fogo. Podíamos escutar o som das balas estourando ao redor da garagem. Com máxima intenção, eles apontaram para nós e dispararam. É óbvio que pretendiam matar todas as pessoas do MOVE – não pensaram em prender ninguém”.
Depois de sobreviver ao bombardeio, acusaram Ramona de conspiração, incitação de distúrbios e assalto simples e grave. Sua sentença foi de 16 meses e 7 anos, mas cumpriu os 7 anos após negarem a ela a liberdade condicional por se recusar a renunciar ao MOVE.
Durante o juízo, todas as acusações enumeradas na ordem de detenção para justificar a operação foram menosprezadas pelo juiz. Ramona disse: ”Isto significa que não tinham motivos válidos para estarem lá fora, mas não menosprezaram as acusações contra mim como resultado do que se passou quando apareceram”.
Ao final do juízo de Ramona em 1986, o juiz Stiles especificamente instruiu aos jurados que não deveriam levar em conta a má conduta dos policiais ou outros oficiais do governo porque eles teriam que prestar contas em outros procedimentos.
Isto nunca aconteceu. Ramona explica: “Nem um só oficial, nem um policial ou qualquer outra pessoa teve que prestar contas ante a corte pelo assassinato da minha família”.
“Ninguém deve se deixar enganar quando este governo usa palavras como “a justiça”. Meus familiares, que eram os pais da maioria das crianças assassinadas nesse 13 de maio, estão na prisão há quase 30 anos, acusados de um assassinato que não cometeram. Nem uma só testemunha os identificou. Enquanto isso, aqueles que assassinaram os seus filhos seguem suas vidas normalmente. O mundo os considera pessoas respeitáveis; nunca passaram nem um dia na prisão”.

As origens do conflito


O bombardeio policial de 1985 foi a culminação de muitos anos de repressão política exercida pelas autoridades da Filadélfia. Muito se escreveu sobre os acontecimentos de 13 de maio de 1985, mas pouco se sabe dos “9 do MOVE”: Janine, Debbie, Janet, Merle, Delbert, Mike, Phil, Eddie, e Chuck Africa. Estes nove integrantes da organização MOVE foram sentenciados coletivamente pelo assassinato do oficial James Ramp em 1978, após uma cerco policial em volta da casa do MOVE na colônia de Powelton Village, na Filadélfia.
Terão suas audiências para considerar seus direitos à liberdade condicional em 2008.
Segundo Ramona Africa, “O governo chegou à Powelton Village em 1978 não para nos prender, mas sim para nos matar. Ao fracassar com isto, condenaram injustamente a minha família por um assassinato que o governo sabe que não cometeram e os prenderam com sentenças de 30 a 100 anos. Depois, quando nossa família se atreveu a denunciá-los, vieram novamente a nossa casa e nos bombardearam. Queimaram nossos bebês vivos”.

Primeiro, um pouco de história


Fundada no começo dos anos 70 por John Africa, a organização MOVE buscou descobrir e desafiar todo tipo de injustiças e abusos contra a vida em todas as suas formas, incluindo contra os animais e a natureza. O MOVE promoveu o ativismo comunitário e organizou protestos não-violentos em frente ao zoológico e laboratórios onde se realizavam testes em animais, assim como fóruns públicos e mídias corporativas, entre outros.
Os conflitos iniciais entre o MOVE e a polícia se deram quando os agentes do prefeito Frank Rizzo reagiram com sua brutalidade de sempre ante estas manifestações não violentas. Desde o começo, o MOVE praticou o princípio da autodefesa e seus integrantes “responderam ao ataques com ataques”. Ao defender esta prática, Ramona Africa disse: “Estou segura de que os policiais se aborreceram porque “estes negros” resistiam, dizendo aos policiais que não podiam chegar e atacar nossos homens, mulheres e bebês sem que nos defendêssemos. O que você acha que devíamos fazer? Ficar com os braços cruzados e aceitar os abusos?”.
Dado o regime de mão de ferro de Rizzo, um enfrentamento com o MOVE foi inevitável. Notório por sua brutalidade racista quando era Comissário da polícia de 1968 a 1971, Rizzo uma vez declarou publicamente que ia “fazer com que Átila Huno, se visse como uma bicha”. Foi eleito prefeito em 1972 com consignas tais como “Vota branco”. Em 1979, seu departamento de polícia seria o primeiro acusado pelo governo federal de brutalidade e corrupção.
Os ataques policiais contra o MOVE aumentaram após 9 de maio de 1974, quando duas mulheres grávidas da organização, Janet e Leesing, abortaram depois de terem sido espancadas pela polícia e presas durante uma noite, sem comida nem água. No dia 29 de abril de 1975, Alberta Africa perdeu seu bebê após ser detida, arrastada até a cela, agarrada e golpeada no abdômen e na vagina.
Na noite de 18 de março de 1976, sete prisioneiros do MOVE acabavam de sair da prisão e saudavam a seus familiares em frente à sua casa em Powelton VIllage quando os policiais chegaram e atacaram todo mundo. Seis homens do MOVE foram detidos e golpeados tão severamente que sofreram fraturas cranianas, contusões e ossos estilhaçados. Janine Africa foi atirada ao chão e pisoteada enquanto carregava seu bebê de 3 semanas, Life Africa. O crânio do bebê foi esmagado e Life morreu.
Após o MOVE ter avisado aos meios de comunicação sobre os ataques e a morte do bebê, a polícia declarou publicamente que o bebê não existia porque não havia registro de nascimento, e que o MOVE estava mentindo. Como resposta, o MOVE convidou vários jornalistas e políticos para irem à sua casa e verem o cadáver. Um pouco depois do ataque, o aclamado jornalista da Filadélfia, Mumia Abu-Jamal (agora preso no corredor da morte no mesmo estado da Pensilvânia) fez uma entrevista com uma testemunha presencial que tinha observado tudo, desde sua janela do outro lado da rua. “Vi o bebê cair”, disse o velho. “Davam bordoadas na mãe do bebê. Sabia que o bebê ia ficar machucado. Peguei o telefone para chamar a polícia, mas logo me dei conta que eles eram a polícia, me entende?”. O promotor se negou a apresentar acusações pelo assassinato.

O enfrentamento começa


Como resposta à intensificação da violência policial, o MOVE convocou uma manifestação dramática em 20 de maio de 1977. Vários integrantes subiram em uma grande área na frente de sua casa, carregando o que parecia ser fuzis. Segundo o MOVE: “Dissemos para os tiras que não havia mais mortos escondidos, que desta vez teriam que estar preparados para nos assassinar abertamente porque se nos atacavam com golpes, daríamos golpes também, se nos atavam aos garrotes, os daríamos garrotes, e se nos agrediam com armas, também responderíamos com armas. Não acreditamos nas armas de morte. Acreditamos na vida. Mas sabíamos que os tiras não nos atacariam tão facilmente se tivessem que agüentar o mesmo tratamento que eles dão rotineiramente às pessoas indefesas, sem armas”.
Falando por um megafone na plataforma, o MOVE exigiu a liberdade de seus presos políticos e um fim à violenta agressão executada contra eles pelo governo da cidade.
Policiais fortemente armados rodearam a casa, mas um provável ataque policial foi evitado quando uma multidão de pessoas da comunidade rompeu as linhas policiais e parou na frente da casa do MOVE para proteger os residentes do fogo.
Alguns dias mais tarde, a juíza Lynn Abraham respondeu, emitindo ordens de detenção para 11 integrantes do MOVE, acusando-os de incitar distúrbios e de terem em seu domínio um “instrumento da delinqüência”. A polícia situou vigilância ao redor da casa do MOVE para deter integrantes que saiam da propriedade. O embate durou quase um ano.
O prefeito Rizzo agravou o conflito em 16 de março de 1978, quando sua polícia fechou um perímetro de quatro quadras ao redor da central do MOVE, bloqueando a entrada de comida e fechando a chave de água. Rizzo se gabou dizendo que o bloqueio era “tão estreito que nem uma mosca podia passar”. Muitas pessoas da comunidade foram violentadas e detidas ao tentar entregar comida e água às mulheres grávidas, bebês lactantes e crianças que estavam lá dentro.
Depois do “bloqueio de fome” de dois meses, o MOVE e o governo da cidade chegaram a um acordo, sob pressão do governo federal. No dia 8 de março de 1978, os presos do MOVE conseguiram sair da prisão; por outro lado, a polícia pôde revistar a casa do MOVE para procurar armas. Os agentes se assustaram ao somente encontrar um punhado de réplicas falsas de fuzis inoperantes e alguns fogos de artifício que pensavam que eram dinamites. Segundo o acordo, o promotor teria que retirar todas as acusações contra o MOVE e efetivamente purgar o MOVE do sistema judicial dentro de 4 a 6 semanas. O MOVE, por sua vez, teria que sair de sua casa dentro de 90 dias enquanto o governo da cidade o ajudava a conseguir um novo lar.
Depois de revistar a casa do MOVE e encontrar armas de mentira, a polícia começou a modificar os términos do acordo, enfocando no prazo de 90 dias. O MOVE disse que o período foi descrito aos seus integrantes como um “plano de trabalho factível para mudar de lugar”, mas que isto “foi falsamente apresentado aos meios de comunicação como um prazo absoluto. O MOVE havia deixado clara a sua intenção de mudar de casa e, por sua vez, pretendia manter a central aberta para funcionar como uma escola”.
Na audiência do dia 2 de agosto de 1978, o juiz Fred Dibona disse que o MOVE havia violado a data limite. Assinou ordens de detenção para justificar o cerco policial que começaria na semana seguinte.
Na manhã de 9 de agosto, centenas de policiais entraram. As escavadeiras tombaram a frente da casa enquanto os guindastes destruíram as janelas. Cerca de 45 policiais armados revistaram a casa e se deram conta que as pessoas do MOVE estavam reunidos no sótão. Com mangueiras de alta pressão, a polícia começou a inundar o lugar.
De repente, disparos foram escutados, provavelmente desde uma casa do outro lado da rua. A polícia abriu fogo contra a casa do MOVE, disparando mais de 2.000 cartuchos.
A polícia e a maioria dos principais meios de comunicação reportaram depois que o MOVE havia disparado primeiro. No entanto, os repórteres McCullough e Larry Rosen da radio KYW lembram que escutaram o primeiro disparo vir de uma casa da frente, em diagonal, de onde viam um braço que segurava uma arma recarregada em uma janela do 3º piso.
Logo os disparos ficaram altamente caóticos, quase todos em direção ao sótão inundado. O oficial James Ramp foi morto durante o tiroteio. Outros três policiais e vários bombeiros também receberam disparos. Depois, um oficial encarregado de vigiar a casa reconheceu que havia esvaziado sua carabina, disparando ao sótão onde escutava as mulheres gritando e as crianças chorando. Em uma reunião realizada alguns dias depois, um capitão da polícia comentou sobre a “excessiva quantidade de disparos desnecessários por parte dos policiais”.
Quando o MOVE finalmente se entregou e saiu da casa, os oficiais levaram as crianças e bateram nos adultos com furor. Chuck e Mike Africa estavam feridos pelos disparos quando estavam no sótão. A detenção violenta de Delbert Africa foi gravada ao vivo por um canal de televisão. Enquanto estava deitado no chão, os agentes da polícia golpearam sua cabeça com um fuzil e um capacete de metal e o chutaram ferozmente. Doze adultos do MOVE foram detidos.
Em uma conferência de imprensa realizada pela tarde, alguém perguntou para o prefeito Rizzo se esta seria a última vez que a Filadélfia veria o MOVE. Ele respondeu: “A única maneira de terminar com eles é re-impor a pena de morte. Os coloquem na cadeira elétrica e eu puxo a alavanca”.

A destruição de evidências


O caso subseqüente contra os “9 de MOVE" foi marcado de irregularidades com respeito aos fatos e da manipulação ilegal de evidências pela polícia.
O professor da Universidade de Temple e jornalista da Filadélfia Linn Washington cobriu o enfrentamento de 8 de agosto e o julgamento dos “9 de MOVE”. Entrevistado no documentário intitulado MOVE narrado por Howard Zinn, Washington declarou que "o Departamento da Polícia sabe quem assassinou o oficial Ramp. Foi outro polícia quem disparou sem querer. Há várias evidências de que foi um erro, mas nunca eles vão reconhecer isto. Informei-me disto ao consultar diferentes fontes do Departamento da Polícia, tanto fontes da equipe da SWAT (Armas e Táticas Especiais) como fontes da Seção de Balística".
A manipulação de evidências foi iniciada imediatamente depois da detenção dos adultos do MOVE: o prefeito Rizzo deu a ordem para que a polícia demolisse a casa do MOVE antes de meio-dia do mesmo dia. Os policiais não fizeram nada para preservar a cena do crime, realizar traços com giz, nem medir os ângulos balísticos. Numa audiência preliminar para rejeitar as cargas, o MOVE postulou, sem êxito, que a destruição de sua casa tinha os impedido de mostrar a impossibilidade física de que o MOVE tivesse atirado contra Ramp. O MOVE citou o caso dos Panteras Negras do estado de Illinois, em que a preservação da cena do crime permitiu aos investigadores estabelecer que todos os buracos de bala nas paredes e portas foram feitos pelo fogo policial.
A evidência fotográfica apresentada na corte também foi incompleta. É certo que antes de demolir a casa do MOVE, a polícia tomou fotos de estantes vazias e disseram que eles usavam para guardar armas. Não obstante, não há fotos do MOVE apontando nem disparando armas desde as janelas do sótão ou da polícia retirando armas da casa, tampouco há fotos que apóiam a teoria de que os agentes da polícia retiraram armas do chão no piso do sótão. Ao contrário, um vídeo da polícia visto na corte mostra o anterior Comissário de Polícia, Joseph O'Neill, pondo armas pela janela frontal do sótão da casa do MOVE.
Outra forte indicação da destruição intencional de evidências, é que, nos três vídeos da polícia apresentados na corte, a metragem foi apagada exatamente no momento quando Ramp recebeu o tiro. As evidências de balísticas apresentadas sobre a morte do oficial Ramp também são contraditórias. No documentário MOVE, Linn Washington lembra a maneira em que as evidências no julgamento foram manipuladas. "Tiveram um grande problema com a autenticidade e, portanto, com a validez do relatório do examinador médico. O delegado do ministério público retirou um lápis e apagou as palavras do relatório que ele não gostou. Quando o MOVE objetava, o juiz dizia "sente-se e cale-se" e permitiu que o tipo fizesse isso".
Em 8 de agosto, o Boletim Filadélfia informou que Ramp havia sido "disparado na parte posterior da sua cabeça, segundo o relatório da polícia". O Daily News, pelo contrário, informou no dia seguinte que a ponta da bala tinha entrado pela garganta, fazendo um caminho para baixo em direção ao coração. Mais tarde, o examinador médico da promotoria pública, o médico Marvin Aronson, deu um testemunho na corte que a bala entrou pelo seu "peito e viajou em direção horizontal sem desviar para cima ou para baixo".
Num boletim recente, o MOVE demanda que se tivesse disparado desde o sótão, a trajetória da bala teria sido para cima em vez de para baixo ou horizontal, de acordo com as versões apresentadas.
Aparte isso, teria sido quase impossível fazer um disparo limpo neste momento. A água no sótão, calculada em 2.13 metros de profundidade, obrigou os adultos a carregar as crianças e os animais para evitar que se afogassem. "A pressão da água era tão poderosa que levantava as alças da ferrovia de 2 metros (estas vigas faziam parte da nossa cerca) e eles as jogaram pelas janelas do sótão em nós. Não há nenhuma maneira de que alguém pudesse ter suportado a pressão da água e dos escombros para logo atirar ou apontar para matar alguém".
Em 4 de maio de 1980, Janine, Debbie, Janet, Merle, Delbert, Mike, Phil, Eddie, e Chuckl Africa foram condenados por assassinato em terceiro grau, conspiração e várias cargas de tentativa de assassinato e roubo. Cada pessoa recebeu uma sentença de 30 a 100 anos. Outras duas pessoas que denunciaram o MOVE foram absolvidos.
Consuela Africa foi réu num processo aparte porque o delegado do ministério público não achou evidências de que ela era integrante do MOVE.
Mumia Abu-Jamal escreve que os “9 de MOVE foram condenados por ser unidos, não na delinqüência, mas em rebelião contra o sistema e em resistência contra os ataques armados do estado. Foram condenados por ser membros do MOVE”.
Quando Juidge Malmed foi como convidado alguns dias depois num talk show, Abu-Jamal ligou para perguntar quem tinha matado Ramp. O juiz disse: "Não faço a menor idéia". Explicou que os membros do MOVE se consideravam como uma família e por isso ele os encontrou culpado como uma família.

As audiências de 2009


Mike Africa, filho, quer que seus pais retornem para casa. Filho dos presos Mike e Debbie, dos “9 do MOVE”, o jovem Mike nasceu na prisão algumas semanas depois de que sua mamãe sobreviveu ao fogo policial e a uma surra selvagem que recebeu em 8 de agosto de 1978. Hoje em dia, Mike explica que crescer sem pais é "muito duro. É como perder parte de você mesmo. O sistema separou às pessoas do MOVE porque sabem que é muito difícil de viver à parte da sua família".
Depois do bombardeio de 13 de maio de 1985, a avó de Mike decidiu deixar o MOVE e levou ele e a sua irmã com ela. "Não estar no MOVE e não ter papás foi muito duro.
Não entendi por que meus pais estavam em prisão e isso me deu vergonha. Ninguém me explicou nada até que Ramona me trouxe outra vez ao MOVE depois de deixar a cadeia em 1992". Depois de regressar ao MOVE, Mike viajou por muitas partes do mundo para divulgar a luta pela libertação de seus pais e os outros presos e presas dos “9 do MOVE”.
Uma destas presas, Merle Africa, morreu tragicamente atrás das grades em 1998 sob circunstâncias suspeitíssimas. Em agosto de 2008 marcou o trigésimo ano de encarceramento dos “9 do MOVE”, e pela primeira vez eles tiveram o direito a liberdade condicional. Seus apoiadores organizaram um apoio público para sua saída, inclusive uma série de vídeos ao vivo, um abaixo-assinado e uma campanha para se comunicar com o Conselho de Liberdade Condicional através de cartas e chamadas telefônicas. Apesar da pressão pública, o Conselho negou o direito deles de saírem, ainda quando as mulheres nem sequer foram acusadas de carregar armas. O MOVE começou a organizar e a reunir apoio público para alcançar sua liberdade.
Agora, em 2009, o Conselho de Liberdade convocou as audiências outra vez, e o MOVE iniciou outra campanha para enviar chamadas telefônicas e cartas em apoio à liberdade dos prisioneiros. Estão convocando uma manifestação na Filadélfia em 16 de maio, sábado, para marcar o vigésimo quarto aniversário da matança de 13 de maio 1985.
Ramona Africa se preocupa muito com as possíveis cláusulas que poderiam programar para negar-lhes a liberdade condicional.
A primeira se conhece como o artigo "tomar responsabilidade", que exige, em efeito, que um prisioneiro reconheça sua culpa para que eles ofereçam a liberdade condicional. "Isto não é aceitável; é claramente ilegal. Se uma pessoa é condenada num julgamento, é ridículo exigir que assuma a culpa mesmo quando proclama sua inocência, como é o caso com os “9 do MOVE”. A única questão relevante com referência à conceder a liberdade condicional deve ser a má conduta na prisão, algo que poderia indicar que uma pessoa não está pronta para receber a liberdade condicional. Aparte disso, eles devem consentir essa licença", explica Ramona.
A segunda é a cláusula que se refere "a natureza grave da ofensa". "Esta também é claramente ilegal porque o juiz tomou tudo isso em consideração quando emitiu a sentença. Se não houvesse má conduta, problemas, novas cargas etc., eles devem permitir que o preso ou presa saia depois de servir o termo mínimo. A negação deste direito é, no fundo, uma nova sentença. Temos que resolver estas questões porque quando nossos familiares pedem a liberdade condicional, não queremos escutar mais estas tolices".
Ramona também aconselha que as pessoas apóiem Mumia Abu-Jamal, a quem a Suprema Corte dos Estados Unidos acaba de negar-lhe um novo julgamento para determinar inocência ou culpabilidade. Ligue, escreva para o presidente Barack Obama e ao Procurador Eric Holder para abrir uma investigação sobre as violações de direitos civis no caso. Ramona diz: "A vida deste irmão está por um triz... Ele se tornou um alvo do governo porque foi o único jornalista que sempre disse a verdade sobre o que aconteceu com o MOVE. Mumia nos deu seu apoio total durante muitos anos e por isso nós lhe damos nosso apoio e lealdade agora".
Atualmente, Mumia Abu-Jamal escreve: "A calma reação do público ao intenso homicídio dos integrantes do MOVE têm preparado o caminho para uma violência estatal aceitável contra os radicais, "os negros", e todos os considerados inaceitáveis socialmente...
As mentalidades distorcidas em jogo aqui são semelhantes as da Alemanha dos nazistas, ou talvez, mais ao ponto, às "My Lai" no Vietnã ou de Bagdá. São os espíritos depois que o idiótica mantra assassino fez ecoar desde Da Nang: "Tivemos que destruir a aldeia para salvá-la".
Durante todos estes anos, as autoridades nunca deixaram em paz o MOVE. A destruição de suas casas em 1978 e 1985, a detenção e sentença de morte imposta ao jornalista Mumia Abu-Jamal, que tinha reportado os conflitos do MOVE; a morte em 1998 de Merle Africa na prisão; e a batalha de custódia de 2002 sobre Zachary Gilbride Africa são alguns poucos exemplos da longa história do MOVE em seus enfrentamentos com o sistema. Esta tradição é resumida melhor pelo fundador do MOVE, John Africa, em sua fala ao júri em 1981 quando foi absolvido de cargas federais de posse de armas no famoso julgamento "John áfrica versus o Sistema":
"Já é tempo para que todas as pessoas pobres se libertem do afogadiço enganador que permeia a sociedade... Este sistema fracassou ontem, fracassa hoje e criou as condições para fracassar amanhã porque a sociedade está doente, o sistema está cambaleando, as cortes estão em plena desigualdade. Os tiras estão loucos, os juízes escravizadores, os advogados são tão justos quanto os juízes que enfrentam... treinados pelo sistema para ser como o sistema, para servir o sistema, para explorar de mãos dada com o sistema. E o MOVE não fechará os olhos diante deste monstro".


Hans Bennett

http://www.bornblackmag.com/move_9.html

Hans Bennett é um jornalista independente e multimidiático e co-fundador do Journalists For Mumia - Jornalistas por Mumia.
Mais infos: http://www.onamove.com ou www.move9parole.blogspot.com

Tradução: Marcelo Yokoi

Fonte: agência de notícias anarquistas - ana: a_n_a@riseup.net

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Cry of the morning - THE MOB

Enquanto a maioria das bandas punks / hardcore que buscaram tematizar a realidade da guerra e todo o sofrimento decorrente o fizeram de uma maneira exaustiva e superficial, seguindo a velha cartilha de transformar qualquer sinal de sofrimento e tragédia em puro fetiche, The Mob conseguiu seguir um caminho diferente. Dentre as próprias bandas peacepunks, foi uma das únicas que afirmou categoricamente que 'nenhuma pomba vôa aqui'. Um viés pessimista que para além das questões estritamente políticas consegue captar e falar sobre o sofrimento, sem transformá-lo em um jingle dis ou em uma beat de inverno.


Cry of the morning (Choro da manhã)


BAIXE AQUI

(Do LP "Let the tribe increase")

Sem tempo para amor se eles chegam pela manhã
Sem tempo para demonstrar medo ou para lágrimas pela manhã
Sem tempo para despedidas sem tempo para perguntar porque

E o lamento da sirene é o choro da manhã

Sem tempo para ódio se eles chegam pela manhã
Sem tempo para as mães jovens enlutarem
Sem tempo para voltar ou correr para longe
ou para chorar por seus bebês pela manhã

Sem tempo para reagir se eles chegam pela manhã
Sem tempo para desviar, para se esconder
Sem tempo para reflexões, ou sonhos perdidos e esperanças

E o lamento da sirene é o choro da manhã (3x)


* Parte da música foi inspirada por uma canção folk escrita por Jack Warshaw em 1977.

** As figuras abaixo foram retiradas das páginas 78 à 93 da HQ de Joe Sacco "Área de Segurança GORAZDE: a Guerra da Bosnia Oriental 1922-1995" (Editora Conrad, 2001). Basta clicar em cada uma delas (sempre da esquerda para a direita) para vê-las em um tamanho legível. Gracias a Juba pelos scans!! : )


quinta-feira, 11 de junho de 2009

Meaning in flames - SUBMISSION HOLD

"Depois da tour do verão de 2005, e 12 anos de turnês criando músicas e idéias, nós decidimos parar pelo ano. Nove meses depois daquele ano, era óbvio para todxs nós que a pausa era permanente. Então, agradecimentos bem atrasados para aquelxs que nos apoiaram e inspiraram pelos anos. Felizmente, nós fizemos algum tipo de contribuição positiva. Mesmo que não estejamos mais ativxs como banda, permanecemos amigxs e continuamos a aplicar o que vocês nos ensinaram em outros projetos. Nós tivemos ótimos tempos. Quem sabe não é a sua vez?"

Meaning in flames (Significado nas chamas)


BAIXE AQUI


(Do LP "Sackcloth and Ashes - The Ostrich Dies on Monday")

Você tem uma história alternativa em mente?
Pode distinguir a realidade da imaginação?
Recriar o passado
para caber uma visão alternativa de futuro
que eu tenho em mente?

Mude uma peça do quebra-cabeças
E você terá pessoas sonhando em fazer coisas
que elxs não sonhariam fazer.
Estou sonhando este sonho
Ou este sonho está me sonhando?

O alarme desligou - um pouco atrasado
e a transmissão começa
Nos diz:
"O mundo está em chamas" (5x)
"Abra seus olhos! Abra seus olhos!"

E eu penso e recordo que havia um tempo
Onde eu também acreditava nisso
E agora me dizem que eles arrancaram seus lábios
Eu não vou suportar isso
Eu não vou suportar isso

E isso é um aprendizado
E isso é uma lembrança falha
Eu não posso me lembrar do passado então eu o repito
Eu não posso me lembrar do passado então eu o repito

Me escondi debaixo das cobertas
com muita de-liberação
Mas a transmissão continuou atravessando
Com dez segundos de atraso

[O mundo está em chamas
Por um pequeno segundo todxs entendemos]

Todxs estamos queimando, tudo está queimando, tudo está morrendo. (3x)

E nós nos dizemos de novo e de novo
Encontre significado nas chamas
Eu posso sobreviver a este dia
Se conseguir ver alguma coisa bela

O mundo está em chamas
E na luz alaranjada
Eu danço em um túmulo
Brindo à lápide
E ajoelhadx
Eu escrevo meu nome.

Todxs estamos queimando, tudo está queimando, tudo está morrendo.
"O mundo está em chamas" (5x)


"Sonho com outro tempo - um tempo de ficcção científica, especulativo. Onde qualquer coisa é possível. Um tempo utópico, distópico, mas não tão míope. Sonho com um tempo - de um lugar - onde a parte tão obviamente absurda de nossas vidas não existe. Onde somos o sonho e o sonho é a realidade. De um lugar onde as pessoas não vivem em jaulas - nem físicas, nem imaginárias. Onde existem verdadeiras escolhas em nossas vidas e mesmo sem solução para todos os problemas, não estamos todxs perdidxs.
Sonho...
Foi em um desses dias nos quais não tens nem vontade de sair da cama. Paralizadx pela desesperança e desespero, uma sensação dominadora que se parece em tudo como uma verdade não reconhecida. Eu reconheço minha própria mortalidade e percebo que não sou nada. Mas algumas vezes eu posso enxergar além da minha visão limitada e ver um futuro (e um passado) que desviam e superam nossos tempos de tanta desilusão. Há esperança - ainda que seja pequena e algumas vezes eu a perca, consigo encontrá-la de novo. Tudo está em constante mudança. Nada é permanente. A mudança está sempre no horizonte.
Eu acordo, saio na rua e vejo uma rachadura no concreto".

[Submission Hold]

"Este mundo está nos envenenado, nos limitando em atividades inúteis e nocivas, nos impondo ter a necessidade de dinheiro e nos privando de relações apaixonantes. Estamos envelhecendo entre homens e mulheres sem sonhos, estrangeirxs em um presente que não deixa espaço para nossos impulsos mais generosos. Não somos partidárixs de nenhuma abnegação. É que simplesmente o que esta sociedade sabe oferecer como o melhor (a carreira, a fama, a vitória imprevista, o "amor"), não nos interessa. Mandar nos repugna tanto quanto a obediência. Somos exploradxs como xs outrxs e queremos terminar o quanto antes com a exploração. Para nós, a revolta não precisa de outras justificativas.
Nossa vida está nos escapando e todo discurso de classe que não parta disso não é outra coisa senão uma mera mentira. Não queremos dirigir nem apoiar movimentos sociais, mas sim participar nos que existem na medida em que reconheçamos neles exigências comuns. Desde uma perspectiva desmedida de libertação, não existem formas de lutas superiores. A revolta necessita de tudo, jornais e livros, armas e explosivos, reflexões e blasfêmias, venenos, punhais e incêndios. O único problema interessante é como mesclá-los."

Ai ferri corti "Romper con esta realidad, sus defensores y sus falsos críticos"
Anónimo. Páginas 24 e 25. Editorial Muturreko Buru
taziok (anti-politics.net)


"Nós não estamos com nem um pouco de medo das ruínas...
Nós carregamos um mundo novo aqui, em nossos corações..."
- Buenaventura Durruti



A MANADA SE DESPEDE DO CORPO DO FELINO QUE PARTIU, MAS MOSTRA AS GARRAS PARA DEFENDER SUA MEMÓRIA

A sexta-feira 22 de maio ficou suspensa na memória

O dia parou quando nos noticiários aparece a foto de nosso irmão Mauri. Acabou sendo ele quem morreu como resultado da detonação inesperada do artefato explosivo que portava. Atacaria a escola de polícia, carcereiros que fazem da tortura um trabalho.

Era cerca de três da tarde quando em nosso lar chegam os carros da imprensa, desejosos de obter alguma imagem, quem sabe uma lágrima de dor ou a condenação pública. Nesse mesmo instante são invadidas mais duas casas do bairro, "Cueto con Andes" e a okupação "La idea". Nessa última o aparato é dantesco. Um grupo de assalto, franco-atiradores, helicópteros, todos os brinquedos novos para o show em pleno centro de Santiago.

A casa é destruída e xs companheirxs são detidxs, transferidxs para uma unidade da polícia de investigações. São filmadxs, desnudadxs e ameaçadxs. Se não cooperarem com a investigação, xs farão ver as fotografias do estado em que ficou o corpo de nosso irmão. Entendemos isso apenas como uma técnica a mais da morbidade do poder, não nos surpreendemos nem lamentamos, só reafirma nosso mais profundo desprezo por eles.

A polícia, em sua ânsia de obter resultados, ingressa na casa um recipiente com pólvora. Continua o circo. Não queremos apelar à montagem como defesa política, mas o inegável, o real e alheio a toda discussão é que tecnicamente a pólvora foi introduzida pela polícia. É tal o nervosismo por parte dos guardiões do poder, que apesar desse fato (que juridicamente leva à detenção automática) xs companheirxs são libertadxs e com o passar das horas, três delxs (argentinxs) perdem permissão diária, sua permanência no país depende exclusivamente do ânimo dos fiscais.

Paralelo a isso, no meio de toda tensão, a polícia cerca nossa rua com fitas de segurança, isolando a área e se posicionando nos arredores. A invasão de nosso lar era iminente.

Com o peito estufado e o rosto coberto, nos colocamos em guarda...

Decididxs a fazer frente à repressão, nos amotinamos, supondo que talvez o que podíamos fazer era simplesmente um gesto. Nossos anos de discurso fez sentido sem hesitação, os espaços se defendem, não se cedem, não se abandonam, assumindo todas as consequencias que nosso ato poderia provocar.

Aqui queremos parar por um momento, é importante refletir sobre o que fazer ou não diante da repressão, sobre como fazer. A vida corre vertiginosamente, com uma urgência de tomar posições, é fácil às vezes sucumbir ao abismo e não medir com suficiente peso os obstáculos que enfrentamos diariamente. A convicção com a qual enfrentamos esse dia, isso tínhamos claro, não impediria nem por um momento o ingresso das forças repressivas, mas o que estava realmente em jogo? Nada mais que nossa moralidade, nada mais que o peso real de nossas posições diante do mundo, a maneira como enfrentaríamos esse momento, também determinaria a resposta dxs companheirxs que estavam fora.

A opção mais sensata, à partir da racionalidade imposta, que não tem nem princípios nem moral a mais que a comodidade e o medo, era abandonar a casa, colocar em resguardo nossa integridade, nossa "liberdade", nossas vidas, mas não o fizemos. Se Mauri tivesse tomado esse caminho, se tivesse se deixado seduzir pela vida cômoda do capital, hoje estaria vivo, divertindo-se, em êxtase com as efêmeras felicidades que são oferecidas. Mas está morto. Morreu em guerra com o existente, optou pelo caminho mais difícil, fez de cada parte de sua vida um combate.

É preciso entender que nenhuma ação em si mesma gera a queda do capital, nem defender-se em um teto, nem parar uma biblioteca, nem portar uma carga na mochila, isso não está em questão. É o sentido que motiva as ações que gera uma ruptura com a sociedade sustentada pela exploração e pelo poder. Não vivemos esperando um futuro ideal onde podemos realizar nossos sonhos e desejos. Aqui e agora, em cada pequeno ou espetacular ato de revolta recuperamos nossas vidas. O irônico é que a recuperamos mesmo quando nossa vida se esvai por ele.

Enquanto toda essa análise se condensava em nossas cabeças, que a essa hora ardiam, companheirxs solidárixs, nos apoiavam desde fora. Nos enviavam força e enfrentavam a polícia e a imprensa, registrando-se xs primeirxs detidxs. Em apoio aos porta-vozes do poder, a polícia intervém, lançam gases e água tóxica. Entre xs companheirxs os afrontamos, no entanto, conseguem dispersar xs solidárixs permanecendo só a polícia no setor.

Cai a noite, os guardiões do capital e seus porta-vozes se afastam...

Xs companheirxs se aproximam da casa, tomando a rua. Pela primeira vez no dia podemos estar todxs juntxs, podemos conversar e sentir as mãos de nossxs cúmplices. Emocionadxs vemos do telhado a grande quantidade de irmãs/ãos que nos faziam companhia, sentimos sua presença com muito afeto. É aí que recentemente algumas/uns ganham consciência da partida de nosso irmão Mauri, algumas/uns choram, se abraçam e gritam para nós algo que todxs pudemos sentir sem duvidar: "NÃO ESTÃO SOZINHXS" e não, não nos sentíamos sozinhxs.

Avança a noite, o frio toca nossos ossos, a comida é coletivizada, as primeiras fogueiras são acesas e escutamos a música que Mauri mais gostava. Nos trazem alimentos. A essa altura as paredes do bairro são pichadas com frases de apoio a nosso irmão.

De repente nos avisam da chegada de comitivas policiais. Nossxs irmãs/ãos que estão fora, decidem não esperar, iniciam as barricadas. Juram não abandonar-nos, cumprem sua promessa à risca. Gritamos todxs juntxs por Mauri, fazemos da profunda dor que nos destroça, uma labareda contra a autoridade. O fogo se expande pelo bairro.

Nossos olhos não alcançam para dimensionar o que ocorre lá fora, só escutamos os gritos, o ruído do enfrentamento e o cheiro da fumaça do confronto.

A polícia lança seu gás e água, ainda assim decide não atacar diretamente a casa, nem a nós que rasgávamos nossa voz gritando, com a pele gelada, com os olhos inchados. A brisa noturna mostra a quantidade de horas que ficamos em tensão, o corpo pesa como uma mochila gigante.

Com o passar dos dias podemos analisar que a polícia decidiu não entrar em nosso lar, não arrebentá-lo e destroçá-lo como as outras casas, apenas como uma jogada estratégica... talvez nos guardem para algo maior.

Mas a decisão de não nos atacar abertamente, não se estendeu a nossxs companheirxs que se solidarizavam lá de fora. Sobre elxs atacaram com tudo. A besta policial queria ver sangue e utilizou todos os seus esforços, ainda assim nossxs irmãs/ãos não se amedrontaram, apesar da diferença numérica, se fizeram sentir em todo o bairro, levantando barricadas, virando carros nas ruas, desatando sua fúria.

O cerco policial é superado com a estratégia de se dividir, expandindo assim a revolta. Foram atacadas instituições do capital, enquanto o bairro recebe a odiosa presença das distintas polícias.

Para caçar nossxs comanheirxs não medem esforços, golpes, atropelos e disparos, nada faltou... contabilizando-se mais de uma dezena de detidxs, cujos rostos revelavam a dureza da operação. A todxs elxs, um abraço fraterno, um sincero agradecimento pela entrega, pelo apoio dado e a força enviada. Nos será impossível esquecer todos os olhos que se incendiaram ao clamor das fogueiras e barricadas, como tampouco se apagará em nossa memória o ruído dos gritos de apoio. Mauri estava conosco, correndo e rindo entre todxs esta noite, no fim da rua, levantando barricadas até o teto com o coração em chamas, nessa eterna noite que ainda permanece incandescente na memória.

Durante a madrugada policiais tentaram invadir por casas e edifícios vizinhos, e ao não conseguirem, o pessoal das SIP fotografou nosso lar, de diferentes ângulos.

Os primeiros raios de sol nos permitiram observar o estado em que estava os arredores da casa. Vivemos uma manhã que não acreditávamos que chegaria... ao abrir nosso lar pudemos compartilhar com xs irmãs/ãos que ainda nos faziam companhia, enquanto lá fora ainda ardiam as chamas.

A despedida do corpo do companheiro Mauri... só de seu corpo

A despedida do companheiro anarquista (ou "aspirante a anarquista", como brincando gostava de definir-se) foi numerosa e emotivamente combativa. Centenas de encapuzadxs vestidxs de negro tomavam as ruas. A polícia à distância nos vigiava sem dar trégua, de morros distantes nos filmavam e apontavam com armamento de guerra.

Saímos em marcha da casa de Mauri até o cemitério. Os ônibus contratados sucumbiram perante o medo. A mãe e o irmão de Mauri se comportaram inegavelmente à altura das circunstâncias, caminharam conosco, o cansaço e a dor não se contavam nesse momento.

Apesar do operativo empregado com a finalidade de amedrontar, nós e nossxs companheirxs enfrentamos decididos esse momento. Queremos nos despedir com honra do corpo de um guerreiro, mas considerando que o que se foi é só um corpo, só carne inerte, sua energia, sua força criadora e destrutiva, hoje se mescla conosco de mil maneiras.

Durante a despedida, teve gente que tomou a palavra, algumxs/uns leram poemas e despedidas íntimas e teve outrxs, que com o eterno desejo de aparecer e tirar proveito de um momento tão duro, levantaram sua voz apenas para cortar o silêncio com incoerências, com supostos pensamentos de Mauri, que são apenas distorções de suas idéias, que nada têm haver com o que o companheiro pensava e fazia e pelo que acabou por morrer.

Isso se estende a saudações e comunicados que se difundem pela internet, onde se faz mais alusão a proselitismo político do que as idéias que nosso companheiro empunhou.

Aqui temos que ser claros, não deixar espaço à dúvida, Mauri era um antisocial, é possível estar de acordo ou não, criticá-lo ou apoiá-lo, mas sempre tendo como perspectiva as idéias dele e não o que acreditamos que pensava ou que foi dito que pensava, só assim se respeita um companheiro e tem ali completo sentido sua morte.

O companheiro entendia esta sociedade e qualquer outra que se pretendesse construir como a materialização do poder, como a negação da afinidade e da livre associação, como a anulação da autonomia individual. Pretendia a destruição da civilização e a volta à vida selvagem. Definia-se vegano e regia sua vida pelos princípios da libertação animal, sempre desde um caráter revolucionário e não compassivo. Odiava de morte as posições plataformistas e amarelas, os bombeiros da revolta e aquelxs que acreditavam em um etapismo na luta contra o capital.

A luta não se centrava em uma falsa afinidade com x outrx exploradx, seriam seus sentidos, ações e cumplicidades que gerariam a irmandade e a afinidade.

Que a dor não apague a raiva, que queime todo germe de autoridade

Esse era, esse é nosso companheiro, nosso irmão e não aceitaremos mais lama sobre suas idéias, seus gestos e vida. Com ele compartilhamos ódios, raivas, encontros e desencontros, é nosso irmão, não um slogan, não um rosto frio atrás da linha policial, é vida mesmo agora, não aceitamos sua morte, nos rebelamos com isso mesmos às custas da estabilidade emocional. Mauri está aqui, dando-nos força nesta dura batalha, que tantas vezes acreditávamos distante.

Passam os dias e a tensão permanente não nos deu um momento de intimidade para chorar por ele como se merece, temos sobre nós o peso constante de sermos invadidxs, detidxs, torturadxs, esmagadxs por sentenças que só buscam secar-nos na prisão ou na solidão da deserção da guerra.

A dor nos parte o coração como uma pontada congelante mas aquilo não pode nos imobilizar, é isso que querem, com isso terão ganhado, nos terão vencido. A morte golpeia e abraça nossa realidade, por vezes desarma nossos projetos e desestabiliza nossos passos mas ao mesmo tempo e de uma maneira esquizofrênica, nos dá força, nos obriga a levantar a cabeça para não trairmos nosso irmão, para não trairmos a nós mesmxs. A lealdade a nós mesmxs e a ele, mesmo às custas de nossa harmonia espiritual.

A loucura nos cumprimenta do precipício, a prisão nos espera ansiosa, a morte levou um felino de nossa manada e a comodidade desde um tempo caminha de mãos dadas com muitxs que acreditávamos estarem conosco. Todos esses caminhos inflamam nosso desprezo enquanto iluminam o caminho insurrecional que escolhemos, sim, leia bem, assim nos definimos.

Mauri nos falou faz alguns dias sobre despertar o guerreiro que vivia nele, isso acreditamos, é o que devemos fazer todxs, apegadxs cada um/a a suas próprias convicções e ações, mas fazê-lo, não deixar-se submeter, nem pelo choro, nem a dor, nem a raiva, nem os inimigos de mil cores possíveis.

Nos solidarizamos com xs detidxs que já se registram e com os que logo mais engrossarão as listas de prisioneirxs, de reféns do estado e do capital.

Enviamos um cumprimento fraterno e cúmplice a nosso irmão sequestrado nas masmorras do poder, que faz anos jurou estar conosco, lado a lado enfrentando um momento como esse: esteve, não te esquecemos. Axel Osorio você também está aqui, ao que parece logo algumas/uns poderemos finalmente te abraçar...

Companheirxs: fiquem atentos e não abaixem a guarda. A guerra social esta desatada e exige nosso melhor desempenho.

"E as minhas ações ao dormir destinam-se para que amanhã ao acordar, romperei com a rotina pela ação individual com o peito como pedra, estufado pela destruição desta e de qualquer sociedade.... Faça-me um favor: garanta que viva a anarquia".
Mauricio Morales




VEJA O MUNDO COMO ELE É... SINTA A VIDA COMO GOSTARIA QUE ELA FOSSE!
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